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papel do magistério de direito ambiental em tempos de pandemia

- Guilherme Purvin -


1. Um grupo de aproximadamente 20 professores de Direito Ambiental (*) reunidos em videoconferência por 2 horas iniciou no final da tarde do dia 20 de março de 2020, a série de debates que a APRODAB pretende promover ao longo das próximas semanas para refletir sobre a contribuição que a nossa disciplina jurídica tem a oferecer neste momento trágico por que passa a humanidade.


2. Embora exista uma conhecida tendência do Direito Ambiental de apontar praticamente todas as mazelas do mundo como decorrentes do desrespeito para com a natureza e descumprimento dos tratados e convenções internacionais e das leis locais sobre meio ambiente, parece-me que não é tão óbvia e flagrante a relação entre tal comportamento e a ocorrência da pandemia de corona-vírus.


População em Xangai (China) enfrentando a pandemia

3. Num primeiro exercício de reflexão, de caráter meramente especulativo, dir-se-ia um brainstorming, apontamos algumas conexões importantes entre o Direito Ambiental e esta crise planetária, as quais são arroladas a seguir. Alerto que não há, nestas anotações preambulares, nenhuma intenção de aprofundamento de qualquer dos tópicos: meu objetivo é de propor subtemas específicos que possam ser do interesse dos estudiosos de nossa disciplina. Embora os temas a seguir desenvolvidos tenham sido debatidos em videoconferência, destaco que este texto não é uma ata ou memória dos debates e os pontos de vista aqui adotados são de inteira responsabilidade. Sem prejuízo disto, agradeço a todos os participantes, pelas valiosas ponderações trazidas ao longo da videoconferência, muitas delas incorporadas a este texto, em especial determinadas reflexões trazidas pelos profesores Alessandra Galli Aprá, Fernando Walcacer, Marcelo Gomes Sodré, Márcia Carneiro Leão e Ricardo Antônio Lucas Camargo (**).


Uma cidade menos poluída


4. Em primeiro lugar, algo ironicamente positivo nesta crise: já faz mais de uma semana que a rua onde moro está silenciosa. Normalmente despertava já às cinco da madrugada com ruído de automóveis, ônibus e caminhões, além das rotas de aviões. Agora, às sete horas me levanto descansado, com uma estranha sensação de que voltei a um passado distante, a São Paulo de minha infância, quando não havia esse rumor contínuo de tráfego terrestre e aéreo. Ou seja, a poluição sonora regrediu significativamente, muito embora não tenha cessado. Mais do que isso, porém, a qualidade do ar atmosférico na Grande São Paulo, de acordo com os dados da agência ambiental paulista, a CETESB, tem sido considerada boa em todos os pontos de medição. Esta inesperada mudança deveria merecer estudos sistemáticos por parte dos cientistas afetos a referidos temas, em especial o segmento da Medicina voltada à pesquisa de doenças de origem cardiorrespiratória e ao da Psicologia voltada aos efeitos da exposição humana ao ruído contínuo.


5. Todo o resto é um verdadeiro exercício de autocontrole para não cairmos num estéril e nocivo pânico.


Estado de Direito e Direito Ambiental


6. O Direito Ambiental é um ramo do Direito. Suas bases são constitucionais. Portanto, a primeira preocupação que deveria ter um professor de Direito Ambiental seria com a própria efetividade do Direito – ou seja, com a defesa do Estado Democrático de Direito. Ora, o Poder Público enfrenta de forma verdadeiramente ignominiosa, para se dizer o mínimo, uma crise que haverá de resultar em mortalidade em massa. As vozes dissonantes na Esplanada dos Ministérios e no Palácio do Planalto revelam à população um total desgoverno. De um lado, um Ministro da Saúde procurando trazer um pouco de racionalidade para o enfrentamento da crise; de outro, um Ministro da Justiça e da Segurança Pública ansioso por fazer valer mecanismos policiais contra a população, supondo que alguém haveria de resistir a um tratamento médico na hipótese de contaminação. E, na cúpula, um fanfarrão comportando-se como verdadeiro bufão, distribuindo abraços, apertos de mão e manuseando telefone celular de seus seguidores em ato público de ataque aos poderes Legislativo e Judiciário. É mais do que justificada, portanto, a preocupação dos professores de Direito Ambiental democratas com o risco de que a crise de corona-vírus venha a constituir um pretexto para a imposição de um estado de sítio e para o descumprimento de todas as garantias individuais e coletivas, bem como para a autonomia dos poderes da República.


7. Partindo, portanto, da premissa de que não há Magistério de Direito Ambiental senão no Estado de Direito, podemos partir para a análise de questões mais diretamente afetas à disciplina.


Princípios de Direito Ambiental - Cooperação Internacional, Informação Ambiental, Obrigatoriedade de Intervenção Estatal, Prevenção e Precaução


Usina de Chernobyl - Ucrânia

8. Questão polêmica diz respeito a recente comparação entre o acidente em Chernobyl e o ponto de origem da pandemia de corona-vírus, na China. Não há como negar que alguns paralelos são detectáveis. Houve, da parte de Zhou Xianwang, prefeito da cidade de Wuhan, epicentro do surto, demora para dar respostas e dados no início das suspeitas sobre a doença. Por conta dessa demora, o presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional – CREDN, da Câmara dos Deputados, comparou os dois episódios – Chernobyl e Wuhan – e concluiu que as duas tragédias decorreram da ausência de liberdade e de transparência de informação em países comunistas (lembrando que a Ucrânia, na época do acidente, integrava a União Soviética). O acidente de Chernobyl exerceu um papel primordial na fixação das bases dos princípios de Direito Ambiental da informação e da cooperação internacional, cabendo aqui recordar que em 1986 foram assinadas em Viena duas convenções sobre radioatividade – uma determinando a imediata notificação em caso de acidente nuclear de emergência radiológica e outra estabelecendo mecanismos de cooperação internacional. Por outro lado, contudo, é importante destacar que a notícia da epidemia ocorreu em janeiro de 2020. Ou seja, há pelo menos dois meses as autoridades mundiais estão cientes do fato e, ainda assim, não foram capazes de tomar as medidas imediatamente necessárias para a contenção da doença. Esta impotência dos governos em impor com urgência medidas sanitárias eficazes está, no entender deste articulista, relacionada com as próprias características do Estado neoliberal, que por definição não se opõe às exigências impostas pelo mercado. Ora, a fixação de restrições de circulação e o fechamento de estabelecimentos de grande afluxo de público, ou ainda o direcionamento da produção econômica para o combate à doença, seriam medidas inteiramente incompatíveis com o modelo capitalista contemporâneo. Vale dizer, ainda que tivessem sido observados rigorosamente os princípios jus-ambientais da informação e da cooperação internacional pela China, isso nenhum resultado positivo traria se, do outro lado do planeta, os princípios da obrigatoriedade da intervenção estatal, da prevenção e da precaução, não são respeitados. A situação no Brasil exemplifica à saciedade que a menção a Chernobyl não passa, mais uma vez, de guerra ideológica de narrativas, sem absolutamente nenhum proveito para a defesa da população e para a diplomacia internacional.


Política Nacional de Saneamento - Princípio da Universalização


9. Foi ressaltado pelos membros de referida videoconferência que, até o momento, estamos pensando exclusivamente nas providências que podem ser tomadas pela classe média e pela classe alta no combate ao vírus. Ocorre que a grande maioria da população não está integrada a esses segmentos privilegiados da população brasileira. Nesse contexto, sobressai um primeiro aspecto importantíssimo: o descaso do Poder Público para com o cumprimento das metas estabelecidas na Lei da Política Nacional de Saneamento (Lei 11.445/2007). A ampliação progressiva do acesso de todos os domicílios ocupados ao saneamento básico, expressão do princípio da universalidade, foi relegada para um segundo ou terceiro planos pelos governos que se sucederam – federal, estaduais e municipais. Não resta nenhuma dúvida de que a desídia destes governos e a mora do Poder Judiciário em julgar definitivamente diversas questões cruciais para o deslinde do imbróglio relativo às competências dos entes federados na administração do saneamento básico, terá efeitos devastadores nos próximos dias junto às camadas mais humildes da população, que não contam com condições mínimas de higiene para resistir ao contágio. Nesse sentido, pode-se dizer que, sim, o irresponsável e criminoso descumprimento de uma lei ambiental específica terá efeitos nefastos que serão sentidos já nos primeiros dias de abril.


Pandemia e Direitos Animais


10. Comentando marginalmente que uma das formas encontradas por este articulista para preservar a sanidade psicológica neste momento foi a Literatura, lembrei as primeiras páginas do Decameron, onde Giovanni Bocaccio faz uma terrível descrição dos efeitos da peste em Florença na primeira metade do Século XIV. Esta citação levou o professor Ricardo Antônio Lucas Camargo a observar que, nos anos que antecederam a peste, teria havido uma campanha de extermínio dos gatos, que estariam sendo vistos como representantes das forças do mal. A redução do número de felinos, assim, teria resultado na proliferação de ratos na Europa e consequente disseminação da doença. Foi trazida pelos participantes da videoconferência a sugestão de que houvesse um debate sobre os direitos dos animais e a pandemia. Não disponho de nenhuma base científica para relacionar a crise de corona-vírus com o desrespeito com os direitos animais, de modo que seria uma leviandade especular sobre o assunto sob tal perspectiva. No entanto, penso que é possível, sim, refletir sobre algumas questões que ainda não foram debatidas e que dizem respeito diretamente ao convívio entre humanos e animais não humanos em espaços confinados. Como proceder a uma adequada higienização de cães e gatos neste momento? Como realizar os passeios diários com os animais pelas ruas? Estas questões ambientais e sanitárias estão postas nas grandes cidades e exigirão a adoção de medidas de profilaxia que poderão, talvez, em resultar num grave aviltamento do direito ao bem estar animal. Cabe lembrar que os padrões contemporâneos de moradia em espaços confinados têm ocasionado a assim chamada síndrome do edifício doente – prédios sem ventilação, nos quais a proliferação de vírus, bactérias e outros agentes patogênicos.


Interdisciplinaridade, Multidisciplinaridade e Conscientização Ambiental - Sair da bolha da Academia


11. É impossível antecipar todas as questões que deverão ser enfrentadas nas próximas semanas e meses pelo Magistério de Direito Ambiental, sobretudo se quisermos circunscrever estas questões no estrito âmbito das ciências jurídicas. Por isso, faz-se necessário mais do que nunca que os debates doravante tenham um caráter inter e multidisciplinar. Não serão os professores de Direito Ambiental, sozinhos, que conseguirão trazer respostas eficazes para a crise de proporções apocalípticas que se avizinha. Por esse motivo, a APRODAB deverá buscar a contribuição de profissionais de todas as demais áreas afetas ao meio ambiente e à saúde pública – biólogos, médicos, engenheiros sanitaristas, sem dúvida, mas também profissionais das áreas da Geografia, das Letras, da Psicologia, do Jornalismo, da Economia, da Arquitetura e Urbanismo e da Geofísica, dentre outros. Não é o momento de nos confinarmos num discurso jurídico hermético e sem qualquer significado. Este deverá, nos próximos meses, ser o norte da APRODAB: fomentar reflexões dos professores de Direito Ambiental do Brasil e do mundo com outras áreas do conhecimento humano e difundir, por meio de textos vazados em linguagem que possa ser compreendida pelo leigo, estas reflexões, sem pretensões de caráter meramente acadêmico. Não é momento de pensar em pontuação no CAPES. É momento de mostrar que o Magistério de Direito Ambiental tem uma função social relevante. Que venham os diálogos e reflexões.


São Paulo, 21 de março de 2020


(*) Realizada em plataforma Zoom, a videoconferência contou com a participação dos associados: Alessandra Galli Aprá (PR); Andreia Mello (RJ); Carlos Frederico Marés (PR); Fernanda Damascena (RS); Fernando C. Walcacer (RJ); Guilherme José Purvin de Figueiredo (SP); João Carlos Veiga (SC); José Nuzzi Neto (SP); Lucíola Cabral (CE); Marcelo Gomes Sodré (SP); Márcia Carneiro Leão (SP); Márcia Diegues Leuzinger (DF); Marisa Medeiros Santos (SP); Pedro Avzaradel (RJ); Rafael Tocantins Maltez (SP); Ricardo Antônio Lucas Camargo (RS); Sheila Pitombeira (CE); Solange Teles da Silva (SP) e Valmir Pozetti (AM).

(**) Agradecimentos especiais à Prof. Andreia Mello, pela assistência na continuidade da videoconferência em plataforma Zoom.

 

Guilherme José Purvin de Figueiredo é Coordenador Geral da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil - APRODAB. É graduado em Direito e Letras pela USP e Doutor em Direito pela mesma Universidade.

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